Leia o texto abaixo. Ele servirá de base para se responder às questões 01 e 02
Coração Segundo
1º § — DE ACRÍLICO, de fórmica, de isopor, meticulosamente combinados, fiz meu segundo coração, para enfrentar situações a que o primeiro, o de nascença, não teria condições de resistir. Tornei-me, assim, homem de dois corações. A operação sigilosa foi ignorada pelos repórteres. Eu mesmo fabriquei meu coração novo, nos fundos da casa onde moro. Nenhum vizinho desconfiou, mesmo porque sabem que costumo fechar-me em casa, semanas inteiras, modelando bonecos de barro ou de massa, que depois ofereço às crianças. Oferecia. Meus bonecos não têm arte, representam o que eu quero. Fiz um Einstein que acharam parecido com Lampião. Para mim, era Einstein. Os garotos riam, tentando adivinhar que tipos eu interpretara. Carlito! Não era. Às vezes, não sei por quê, admitia fosse Carlito. Nunca dei importância a leis de semelhança e verossimilhança, que sufocam toda espécie de criação.
2º § Mas, como disse, fiz meu coração sem ninguém saber. E à noite, em perfeita lucidez, abrindo opeito mediante processo que não vou contar, pois minha descrição talvez horrorizasse o leitor, e eu não pretendo horrorizar ninguém — abrindo o peito, instalei lá dentro esse coração especial, regulado para não sofrer. Ao mesmo tempo, desliguei o outro. Como? Também prefiro não explicar. Possuo extrema habilidade manual, aguçada à noite, e sei o que geralmente se sabe dos órgãos do corpo e suas funções e reações, depois que ficou na moda tratar dessas coisas em jornais e revistas. Além disso, minha capacidade de resistir à dor física sempre foi praticamente ilimitada. Desde criança. Mas as dores morais, as dores alheias, as dores do mundo, acima de tudo, estas sempre me vulneraram. Recompus a incisão, senti que tudo estava perfeito, e fui dormir.
3º § Na manhã seguinte, ao ler as notícias que falavam em fome no Paquistão, guerra civil na
Irlanda, soldados que se drogam no Vietnã para esquecer o massacre, explosão experimental de
bombas de hidrogênio, tensão permanente no Canal de Suez, golpes vitoriosos ou malogrados na
América Latina, bem, não senti absolutamente nada. O coração funcionava a contento. Fui para o
trabalho experimentando sensação inédita de leveza. No caminho, vi um corpo de homem e outro
de mulher estraçalhados entre restos de um automóvel. Pela primeira vez pude contemplar um
espetáculo desses sem me crispar e sem envenenar o meu dia. Fitei-o como a objetos de uma casa
expostos na calçada, em hora de mudança. E passei um dia normal. Trabalho, refeições, sono,
igualmente normais, coisa que não acontecia há anos.
4º § Meu coração fora planejado para evitar padecimento moral, e desempenhava bem a função. Assisti impassível a cenas que antes me fariam explodir em lágrimas ou protestos. Felicitei-me pela excelência. Mas aí começou a ocorrer um fenômeno desconcertante. Eu, que não sofria com as doenças que me assaltavam, passei a sentir reflexos de moléstias inexistentes. Simples corte no dedo, sem inflamação, afligia-me como chaga aberta. Dor de cabeça que passa com um comprimido ficava durante semanas. Meu corpo tornou-se frágil, exposto ao sofrimento. E eu não tinha nada. Consultei especialistas. Fiz checkup, não se descobriu qualquer lesão ou distúrbio funcional. Eram apenas imotivadas, gratuitas. Meu coração nº 2 passava pela radiografia sem ser percebido. Irredutível à dor moral, era invisível a aparelhos de precisão.
5º § Comecei a sofrer tanto com os meus males carnais que a vida se tornou insuportável. A dor aparecia especialmente em horas impróprias. Em reuniões sociais. Em concertos. No escritório, ao tratar de negócios. Então fazia caretas, emitia gemidos surdos, assumindo aspecto feroz. Assustavam-se, queriam chamar ambulância, eu recusava. Tinha medo de que descobrissem o coração fabricado.
6º § Outra coisa: as crianças começaram a achar estranhos meus bonecos, não queriam aceitá-los. Sempre gostei de crianças. E elas me repeliam. Esmerei-me na feitura de peças que pudessem cativá-las, mas em vão.
7º § Hoje vi um homem encostado a um oiti, diante do mar. Sua expressão de angústia dava ao rosto o aspecto de chão ressecado. Tive pena dele. Surpreso, ignorando tudo a seu respeito, mas participando de sua angústia e trazendo-a comigo para casa.
8º § Agora à noite, decidi-me. Voltei a abrir o peito e examinei o coração segundo. Com pequena fissura no isopor, já não era perfeito. Ao tocá-lo, as partes se descolaram. Inútil restaurá-lo. Joguei fora os restos, liguei o antigo e fechei o cavername. Talvez pela falta de uso, sinto que o coração velho está rateando. Que fazer? E vale a pena fazer? A manhã tarda a chegar, e não encontro resposta em mim.
Carlos Drummond de Andrade
01. QUESTÃO
Quanto ao narrador, pode-se afirmar que:
a) como ele confeccionava bonecos perfeitos, foi sempre benquisto pelas crianças.
b) a vida dele tornou-se insuportável em conseqüência de problemas políticos.
c) muito se angustiava por males e sofrimentos alheios.
d) plenamente convicto de suas ações, no final voltou a viver com seu coração de nascença, em perfeito estado de saúde.
e) seu corpo, com o segundo coração, tornou-se frágil em decorrência de distúrbios hormonais.
02. QUESTÃO
Quanto ao significado global do texto:
a) não está na ciência nem na tecnologia, ainda que levadas a um desenvolvimento extremo, o fim do sofrimento humano.
b) a insensibilidade do autor perante as desgraças do mundo é o resultado do transplante de coração a que se submeteu.
c) o hábito de fechar-se em casa foi a maneira eficaz encontrada pelo escritor para fugir à exposição dos perigos da vida.
d) substituindo o coração de carne por outro artificial, o autor conseguiu atingir seu objetivo: evitar padecimento moral.
e) ao se descolarem as partes do coração segundo, o homem ainda assim não se deu conta da fragilidade desse órgão.
03. QUESTÃO
"... modelando bonecos de barro ou de massa, que depois ofereço às crianças. Oferecia." A mudança de tempo verbal tem o seguinte significado:
a) o narrador antecipa uma cessação de ação, que se confirmará no decorrer da narrativa.
b) o pretérito imperfeito refere-se ao momento em que o narrador vai estar com o segundo coração.
c) já, antes da operação, encerrou-se a ação.
d) o narrador não fez mais os bonecos a partir da instalação do novo coração.
e) indicar que todos os fatos narrados pertencem ao passado.
03. QUESTÃO
"... modelando bonecos de barro ou de massa, que depois ofereço às crianças. Oferecia." A mudança de tempo verbal tem o seguinte significado:
a) o narrador antecipa uma cessação de ação, que se confirmará no decorrer da narrativa.
b) o pretérito imperfeito refere-se ao momento em que o narrador vai estar com o segundo coração.
c) já, antes da operação, encerrou-se a ação.
d) o narrador não fez mais os bonecos a partir da instalação do novo coração.
e) indicar que todos os fatos narrados pertencem ao passado.
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RESPOSTAS: 01 - C | 02 - A | 03 - A
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