Capitu, Bentinho e Darwin
[…] A releitura do clássico de Machado à luz da seleção natural
está num artigo na revista científica “Ometeca”, assinado
por Marie-Odile Monier e Emma Otta (respectivamente
doutoranda e professora do Instituto de Psicologia da USP).
O título, traduzido do original inglês: “Era Machado de Assis
um Psicólogo Evolutivo?”. A resposta, sugere a dupla, é um
sonoro sim, ainda que o gênio brasileiro não se desse muita
conta desse fato curioso. [...]
A abordagem evolutiva de um clássico da literatura é um dos
ramos mais férteis e controversos da crítica literária dos últimos
tempos. Com a alcunha de darwinismo literário, a ideia
já foi aplicada a Homero, Flaubert e até a contos de fadas.
Um dos principais expoentes do campo é Joseph Caroll, da
Universidade do Missouri (Estados Unidos), que se correspondeu
com as pesquisadoras brasileiras e as incentivou durante
a análise da obra machadiana.
Otta explica que, para a psicologia evolutiva e sua aplicação
no darwinismo literário, é preciso ter em mente que os seres
humanos, como todas as demais coisas vivas, têm sua mente
moldada para a diretriz número 1 da seleção natural: ter
sucesso reprodutivo.
“O sucesso reprodutivo, a união sexual e a produção de uma
prole bem-sucedida são centrais para as preocupações humanas
e, portanto, também para os trabalhos literários. A
obra literária, como outras manifestações artísticas, reflete e
articula os motivos e interesses dos seres humanos como organismos
vivos”, resume Otta.
Com esse fato básico em mente, não é difícil acompanhar a
análise feita pelas pesquisadoras. Parece até que Machado
comete atos falhos de natureza darwinista. A começar pelo
nascimento do protagonista. Não seria um absurdo evolutivo
a mãe de Bentinho prometer que, se tivesse um filho, iria
mandá-lo ao seminário (eliminando, portanto, suas chances
de descendência)?
Repare no que diz Machado: “Tendo-lhe nascido morto o primeiro
filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo
vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na
Igreja. Talvez esperasse uma menina”. A mãe de Bentinho,
portanto, “troca” com Deus a ausência de descendentes por
uma chance de pelo menos 50% de passar seus genes
adiante, caso desse a sorte de ser mãe de uma menina.
Pista darwinista número 2: a relutância dos parentes solteirões
da pia senhora (um irmão e uma prima) em concordar
com a transformação de Bentinho em seminarista. Os dois,
sem prole própria, têm no garoto a única chance de transmitir
parte de seu patrimônio genético às futuras gerações.
Toda a história complicada do romance com Capitu ilustra
outra tese da psicologia evolutiva: a de que os homens em
geral valorizam atrativos físicos, sinalizadores de fertilidade,
em uma parceira, enquanto as moças buscam segurança financeira
no amado (não é à toa que a família de Bentinho é
de longe a mais endinheirada das duas).
Finalmente, quando Bentinho passa a desconfiar que o pequeno
Ezequiel é, na verdade, filho de seu amigo Escobar,
outros fenômenos da psicologia evolutiva emergem. O mais
marcante é o efeito Cinderela, explica Chelini: “Os dados
mostram que, em famílias nas quais pelo menos um dos
membros do casal não é o pai biológico dos filhos, os maustratos
podem ser 40 vezes mais frequentes”. A motivação,
implacável, tem a ver com a inutilidade de ajudar a propagar
genes que não são os seus. Não é à toa que Bentinho chega
muito perto de matar Ezequiel com uma taça de café envenenado.
[...]
LOPES, Reinaldo José. Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 out. 2009. Ciência.
01. QUESTÃO
Segundo o texto, a análise literária baseada na Teoria Evolutiva,
de Darwin, considera que
A) a prole determina as escolhas amorosas dos humanos
e das personagens.
B) a falha evolutiva é manifesta no comportamento dos
protagonistas.
C) a psicologia evolutiva deve diagnosticar personagens
com distúrbios emocionais.
D) as personagens, como os seres humanos, ignoram a
a descendência genética.
E) as personagens refletem características dos seres
humanos como organismos vivos.
02. QUESTÃO
Observe o trecho do sexto parágrafo transcrito a seguir: “Tendo-lhe
nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se
com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se
fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina”.
Que referente é retomado pelos termos sublinhados?
A) O filho de Escobar.
B) Machado.
C) Bentinho.
D) O irmão de Bentinho.
E) O filho de Capitu.
03. QUESTÃO
Conforme o texto, para a psicologia evolutiva, o drama vivido
por Bentinho diante da possibilidade de ter sido traído
por Capitu, é motivado
A) pela rejeição natural do ser vivo em propagar genes
que não os seus.
B) pelo fenômeno evolutivo que marca os traços físicos
que sinalizam a fertilidade.
C) pela recusa humana em transmitir parte de sua gené-
tica a gerações desconhecidas.
D) pelo patrimônio genético que define os traços masculinos
e femininos das espécies.
E) pela falha da diretriz da seleção natural responsável
pelo sucesso reprodutivo.
04. QUESTÃO
Ao concluir que “não é à toa que Bentinho chega muito
perto de matar Ezequiel com uma taça de café envenenado”,
o autor do artigo sugere que as teses da psicologia
evolutiva aplicadas à literatura
A) recusariam a improcedente desconfiança de Bentinho
quanto à paternidade.
B) confirmariam o enigma da obra Dom Casmurro, atestando
a traição de Capitu.
C) fundamentariam a relutância de Capitu em revelar a
paternidade do filho.
D) descartariam a traição do amigo Escobar pelo fato de
este não possuir um porte físico ideal.
E) revelariam a impotência de Bentinho diante da suposta
traição de Capitu.
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